Desde que você use um porrete!
Na semana em que novos detalhes sobre as graves acusações de agressão sexual envolvendo Neil Gaiman vieram à tona estamos mais uma vez às voltas com a clássica pergunta sem reposta: dá pra separar o autor da obra?
O autor britânico Neil Gaiman teve um lado sombrio de sua vida revelado no podcast Master: the allegations against Neil Gaiman, publicado em julho do ano passado. Acusado por várias mulheres de diversos crimes envolvendo agressões sexuais, a notícia foi recebida com consternação pela legião de fãs que ele acumulava há vários anos, incrédulos de que a pessoa que havia criado as obras tão admiradas como Sandman, Coraline, Belas Maldições e outras tantas pudesse cometer tais tipos de crimes. O caso ganhou mais escopo na última semana quando os relatos de oito mulheres foram detalhados na reportagem de capa da revista New York Press Room (Atenção: alerta de gatilho de abuso sexual. Texto em inglês). E após o impacto inicial da notícia, os fãs se viram presos a uma pergunta que assola o mundo das artes a bastante tempo: o que você faz com um obra quando seu autor se revela um criminoso, uma pessoa com ódio de alguma minoria ou alguém de moral duvidosa?
A pergunta é das mais antigas. Gera polêmica a bastante tempo nas redes sociais quando periodicamente alguma figura muito amada do público aparece envolvida em algum tipo de crime. Há aqueles que defendem ferrenhamente que a obra precisa sim continuar a ser admirada, afinal, após a publicação ela deixa de ser do artista e passa a ser do público. Que de alguma forma a arte pode ser apreciada subjetivamente, ignorando seu contexto e história. Há também aqueles que afirmam ser impossível destacar uma obra de seu autor. Que toda a visão dele está lá presente, independente da mensagem e do entretenimento que proporcionam. Ainda pior, nos casos de artistas ainda vivos, a influência da obra sobre os fãs pode ser usada como ferramenta de manipulação.
Como qualquer polêmica, não há uma resposta totalmente certa. O que dá pra afirmar é que é impossível separar uma autor de sua obra, mas mesmo assim, é importante analisar os diversos casos existentes. Temos casos por exemplo como do Monteiro Lobato e H. P. Lovecraft: autores com obras mundialmente famosas, mas também supremacistas racistas declarados abertamente. No entanto, com ambos já mortos a bastante tempo, os espólios de suas obras foram direcionados a outros tipos de mensagem. Há diversas edições de livros do Sítio do Pica Pau Amarelo que demonstram a existência de racismo da obra e orientam o leitor sobre o assunto. Já falamos aqui há algum tempo sobre a série Lovecraft Country, trama baseada no universo Lovecraftiano que trata sobre racismo e diversidade de um jeito que faria o autor se revirar no túmulo. A série aliás também está envolvida numa polêmica: foi estrelada pelo ator Jonathan Majors, envolvido em agressões a uma ex-companheira. A série é um desses casos onde o trabalho de duas pessoas extremamente questionáveis foi direcionado para passar a mensagem inversa do que essas figuras representam.
Mas há também casos como da autora J. K. Rowling e do ator Johnny Depp. Ela uma transfóbica declarada e assumida. Ele acusado de violência doméstica e abuso psicológico a sua ex esposa. Ambos com obras e carreiras muito influentes até hoje. Ambos usando dessa influência diretamente na sociedade. J. K. Rowling usa até hoje seu dinheiro e espólio de Harry Potter para atacar a existência de pessoas trans, já tendo afirmado em seu twitter que financia grupos que trabalham contra os direitos LGBTQIA+, além de trabalhar politicamente dentro da Inglaterra com esse objetivo.
Johnny Depp (que abriu um processo de difamação contra sua ex esposa, Amber Heard, após ser acusado de abuso físico) utilizou sua influência e apoiou Marilyn Manson (seu amigo de longa data) a abrir o mesmo tipo de processo processo de difamação contra Evan Rachel Wood, Manson é acusado por Wood e outras mulheres de abuso sexual e físico. Consumir as obras de ambos aumentará cada vez mais sua influência e poder econômico. O seu dinheiro gasto vai diretamente para o financiamento do que eles consideram que é certo.
E finalmente retornamos aos casos como de Neil Gaiman. Inicialmente o autor se encontra ostracizado. Diversos projeto envolvendo-o foram cancelados. A grande maioria dos outrora fãs dele respondem hoje com acolhimento às vítimas e desejo de que exista justiça à elas. Consumir a arte do autor estaria então não prejudica ninguém? Muito difícil afirmar. Já testemunhamos outros casos de pessoas com crimes parecidos que inicialmente foram “canceladas” e hoje já voltaram a ter espaço, enquanto suas vítimas são esquecidas, como é o caso do comediante Louis C. K.
No universo ideal todos eles passariam pelos devidos processos de acusação e, confirmados os crimes, seriam condenados e pagariam por eles. Mas sabemos que na vida real quase nada é assim, em especial entre famosos e ricos. Espero de verdade que Gaiman seja punido pelo que fez, mas já sabendo que mesmo que exista uma condenação, vai existir gente para defender o que ele fez por simplesmente não conseguir se desligar da obra.
A arte não existe em um vácuo; ela é produto de um mundo que molda e é moldado por aqueles que a criam. Salvo nos raríssimos casos onde um obra absolutamente não gera nenhum tipo de lucro ou influência a seu autor (que é quando eles já estão mortos ou não mantém nenhum controle sobre), cada vez que você tirar seu dinheiro do bolso para consumir algo, você estará dando poder e financiando quem o criou. Resta a você leitor decidir se quer dar esse poder a essas pessoas e se realmente precisa tanto assim de uma obra específica na sua vida, quando existem tantos trabalhos de pessoa muito melhores disponíveis para você dedicar sua atenção e dinheiro.
Antes de se perguntar se dá para separar o autor da obra, talvez você deva se perguntar “pra quê separar o autor da obra?” Se for para que você meramente se sinta bem ao consumir algo, esqueça: nem existe motivo para discussão. Gaste seu dinheiro onde quiser sabendo que quem não gostar, também está no seu direito de criticar. Mas se você deseja realmente analisar qual seu real papel como consumidor dentro da cadeia de produção artística, aí vale a reflexão: você realmente precisa dessa obra? No mais, o melhor conselho ainda é o clássico: não tenha ídolos.